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sábado, setembro 17, 2005

ZERO DIAS DE VIDA



Gaspar nasceu nas profundezas do mundo. Talvez, isso seja a principal razão para ele nunca ter desejado ter nascido. Nasceu com zero séculos, zero anos, zero minutos e zero segundos. Ele não sabe porque só tem zero segundos de vida, quando já está há oito meses dentro do útero da sua mãe. Quem sabe um erro de cálculo em pleno século XXI. Ele acredita que talvez seja devido aos indivíduos de bata branca que não sabem contar, ou fazer básicas contas de aritmética como as de somar.
Está descontraído o seu grande dia há de chegar.
Ou não?
É engraçado que enquanto o feto está dentro do ventre da sua mãe a contagem da vida é decrescente, depois, quando vêm cá para fora, começa-se a contar de forma crescente.
Porque é que isto acontece, Pergunta para si próprio Gaspar.
Ele pensa e descobre.
Os indivíduos de bata branca sabem que os indivíduos de cabeça grande permanecerão dentro do ventre durante mais ou menos nove meses, por isso é mais útil uma contagem decrescente. Por outro lado, aquilo a que eles chamam bebé, nunca tem um prazo pré definido, por isso eles remetem-nos a uma contagem crescente. Sabe-se lá quanto tempo ele irá durar.
Depende do útero, dos genes. Se o útero for negro, de uma mulher da Guiné por exemplo, é muitíssimo provável que o ser veja os seus quarenta e três anos já no céu ou no inferno, dependendo de como este utilizara os mesmos anos, cá na terra. Sorte, têm quem nasce do ventre de uma japonesa, pois tem quase garantidos setenta e nove anos de vida.
Porquê esta abismal diferença?
Será da morfologia do próprio útero? Podemos dizer que o seio japonês é melhor do que um guineense? Um racismo uterino prevalece antes de um bebe nascer…
Digam o que disserem para Gaspar o melhor era ter nascido no tal útero japonês. Gaspar admira-se do ventre holandês no qual saem bebés que envelhecem até os setenta e oito anos.
Ele fica estupefacto, pois os ventres holandeses são dos que mais abortam bebés. Eles esganam os pescoços aos pobrezinhos, degolam-nos, desfazem-nos em pedaços num crime legal.Será que as mortes provocadas por abortos também contam para a estatística da esperança média de vida? Gaspar acha que não. Holandesas não, pensa ele, apesar de não ter nada contra as terras baixas das holandesas. Até na Suécia que se suicidam aos mil, conseguem manter a população a viver até aos setenta e sete anos. Será que eles contabilizam os suicídios exacerbados? Gaspar acha que não.
Como se a vida fosse para crescer. Mas está mal, pensa ele. Toda a contagem deve ser crescente! No caso de um feto morrer nos últimos oito meses o que dizer? Gaspar acha ter mais sentido dizer que o ser viveu oito meses. Porém os indivíduos de bata branca consideram que ninguém morreu. Ninguém nasceu, ninguém morreu. Mas os oito meses? Serão meros preliminares?
É pena, estamos num mundo em que uma semente não é uma flor, em que uma lagarta não é uma borboleta, em que um ovo é um ovo e não um pintainho e em que um girino não deixa de ser um girino apesar de originar rãs. Enfim estamos num mundo que não se importa com o passado nem com o futuro apenas com o presente.
Gaspar queria nascer no Japão. Ele não se importava de ter nascido lá em vez de ser uma vítima portuguesa, não se importava de ter um nome esquisito, tipo Natasha Hirohami, em vez de Gaspar. Não se importava de ver as bombas atómicas a rebentarem em Nagazaqui e Hiroxima, para ele isso não era um motivo para não nascer Japonês. Não lhe atingia ser um Kamicase da segunda guerra mundial, pelo menos tinha nascido e morrido com honra, com nome. Teria o prazer de ter uma vida para ser morto.
Gaspar pergunta-se para si próprio. Porque não nascemos todos no Japão ou nos E.U.A? Assim todos os úteros seriam de nacionalidade Japonesa e Americana e acabava-se a fome. Toda a gente a partir desse dia seria Americana e Japonesa e toda a gente sobrevivia até pelo menos setenta anos. O raciocínio de Gaspar diz-lhe que não, isso é impossível. Mas na realidade, não é. É possível amontoar numa nova arca de Noé seis biliões de pessoas. Elas não cabem? Cabem, cabem! Toda a população do mundo amontoada ombro a ombro preencheria apenas a ilha de Bali na Indonésia. Cada pessoa ficaria com um metro quadrado, metade de uma banheira. Então na América, que era onde Gaspar viveria muito, caberia certamente toda a gente.
Ninguém se lembrou de fazer isto. Era muito arriscado. Seria isto a verdadeira globalização? Se calhar não haveria racismo. Passados alguns anos toda a população seria totalmente americana. Haveria racismo entre americanos? Gaspar acredita que não.
Os antepassados de Gaspar descobriram terras, mas será que foi importante, terem descoberto novas terras? Só descobriram pobreza e quiseram arruinar os colonos para seu proveito. A escravatura foi uma moeda de troca indigna…Se eles eram pobres pior ficaram.
Nós não ajudamos as pessoas do nosso mundo. Se viesse uma extraterrestre pobre à terra pedir ajuda aposto que o ajudávamos mais rapidamente do que um menino etíope, pobre e muito doente, do nosso mundo.
Ninguém seguiu os conselhos de Gaspar. Ele morreu ao oitavo mês, conforme as escrituras. Ninguém ouviu o seu grito de agonia. Fui eu narrador, todo-poderoso, que lhe dei o nome de Gaspar, senão nem nome teria. A mãe que o carregava esqueceu-o facilmente. Quando o seu próximo filho, Baltazar, nasceu. Baltazar, segundo os indivíduos de bata branca iria nascer perfeito, com as características que a mãe escolhera previamente. Estava contente, pelo seu filho nascer como ela queria.
Gaspar nem chorou, nem sorriu. Para muitos nem teve o prazer de morrer. Mas ele, ele sim sentiu a dor de ser esquartejado pelo tempo e pelo ódio. Deus acolheu-o no céu, pois ele era puro, livre de pecado pois não chegara a gatinhar nas terras terrenas e mundanas. Estou eu aqui para contar os seus oito meses de vida. Que os indivíduos de bata branca ignoram. Que as holandesas ignoram. Que toda a gente ignora mas que têm direito de pertencer pelo menos ao presente.
Como todo-poderoso que sou quis dar-lhe um nome digno da sua pessoa uma alma que sempre teve num corpo que não existiu. Nesta história não há lembrança, não há recordações, não há memória… A mãe não viu a imagem do filho, por isso não a recorda. Ele não se pode recordar de uma coisa que nunca viu. Muito mais se lamentar da morte de um filho que nunca nasceu. Ele não vai para o caixão pois não há fotografia para colocar sobre o granito negro. Ele apenas vai para uma casa de banho. A esta hora o seu corpo está espalhado pelos canos de esgoto. O corpo, ou projecto de corpo, foi esquecido pelos indivíduos de bata branca. É tratado abaixo de cão já que actualmente existem cemitérios para cães.
Esta pequena história podia ser ignorada, como são todas as outras, mas eu, todo-poderoso, fiz questão de a contar. É a história de um ser que nunca chegou a ser ser…


Ricardo Meireles

SE TEU CHEIRO NÃO EXISTE EU INVENTO

Se teu cheiro não existe, eu invento. Sei de cor qual é o teu perfume, sei o que te pertence. Compreendo o cheiro de cada parte do teu corpo e tu conheces o meu. Conheço a mistura do teu cheiro com o meu. Naquela fusão onde o meu cheiro abraçava-se ao teu numa respiração ofegante já transpirado… Aquele cheiro que tinha cor. Era carmim não era? Na essência da canela, havia especiarias indianas raras nunca cheiradas por ninguém mortal. Aquele cheiro era só nosso. Agora está em tudo o que vejo, em tudo o que cheiro.
Ele está na brisa, por onde trocamos o nosso amor.
Está desde as ruas da cidade, onde parávamos nos semáforos, até ao campo onde recolhia flores para te oferecer.
Está na praia quando te via a nadar nua no grande mar.
Está na lua, onde olhávamos, eternamente.
Nos intervalos de cinema.
Nos engarrafamentos.
No elevador.
Na manhãs
Nas tardes,
Nas noites…
Agora está entranhado nas minhas roupas,
No meu cabelo,
No meu hálito…
Não o posso tirar, é como uma aliança perfumada que me prende a ti.
Faça chuva ou faça sol o cheiro esta sempre intacto entre nós, como uma alma imortal. Está petrificado no coração de cada um de nós.
Este nosso cheiro existe, mas não te preocupes se não existisse, eu inventava o seu cheiro, só para nós os dois.

SE TEUS OLHOS ESTÃO PERDIDOS, EU ENCONTRO-OS

Teus olhos estão perdidos? Eu encontro-os. Eles tremem de brilho, dentro de uma luz invisível que vem da alma, da alma do coração. Esse cristal raro que é a paixão, não permite condensar os dois olhos num só, mas deixa queimar nessa fusão imprevista, mas real, um passado perdido, um futuro cadente, um desejo presente…
Os meus olhos tocam nos teus numa única direcção: tu. Num gemido de um olhar, num sentido obstante, onde só existe espaço para nós dois, há a obrigação de te olhar, de te ver por perto, por dentro sem te perder. Não é magia. Feitiçaria, talvez. É mordaz o sentimento que atraiçoa o medo e não esquece a própria identidade da memória mas é bom no presente quando és minha.
Teus olhos voam para além, quero segui-los, quero olhá-los, olhos nos olhos, como quem quer ver. Quero tocá-los à distância de um amor distinto, possível e indeterminado. Numa ilusão de óptica quase te perco, os meus olhos nos teus, os teus olhos nos meus, os meus olhos são teus, os teus olhos são meus… Na expectativa há a esperança de uma olhar mais profundo, mais ardente o que eu quero tu vês o que tu queres eu vejo…
Finges que não me vês, mas sei que às escondidas, quando eu fecho os meus olhos, tu lá estás, a vigiar-me com os teus lindos olhos, a observar-me sonhando por uma palavra e por um gesto mais corajoso que te faça feliz. Estás a dizer que sim, a piscar-me o olho… Mas porque te escondes? Não escondas, fecha os olhos comigo e sonha o mesmo que eu. E nunca te esqueças, se teus olhos estão perdidos eu encontro-os.

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